A Lei 12.519 de 2011 instituiu oficialmente, no calendário, o 20 de novembro como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. A data é o aniversário de morte do líder Zumbi, negro do Quilombo dos Palmares, e simboliza a resistência aos mais de 400 anos da escravização negra no mundo. Assim, o mês pode ser considerado “novembro enegrecido”, um lembrete de uma ferida que nós, negros, não podemos esquecer.
No Brasil, apesar de oficialmente ter durado 388 anos, a escravização e seus reflexos na sociedade se fazem presentes e promovem exclusões. A data que marca o fim desta era foi incluída em 2003 no calendário escolar nacional.
Enegrecer é materializar, de fato, as dores que pessoas negras vivenciam em todo o mundo. Alguns dos filmes que estão em cartaz nos canais de streaming, tais como 12 Anos de Escravidão, Doutor Gama, Histórias Cruzadas, e algumas produções brasileiras como Besouro e Cafundó, mostram histórias de pessoas negras, empreendedoras, cientistas, engenheiras, entre tantas outras, que criaram, inovaram e tiveram seus nomes apagados e desvinculados de suas inovações, sendo substituídos por nomes de pessoas não negras.
Um-dos fatos mais marcantes que não é muito divulgado, pois a História não traz nos livros didáticos, é que o sequestro de negros da África foi, sim, favorecido por outros negros, e os não negros[1] ganharam muito dinheiro com isso dentro de um projeto de colonização, inclusive usando estratégias como a desumanização das relações, que permitia escravizar, matar e deixar morrer; capitalizando a natureza para ser explorada como um “bem” duradouro e infinito; criando um modelo normativo europeu do homem branco, heteronormativo e que age pela militarização, ou seja, cria hierarquias e domina com violência, destruindo tudo que está entre ele e seu objetivo, seja esse objetivo qual for.
Esse homem fomentou guerras, posses de terras e a tomada de riquezas entre as diversas nações da região. No livro Arte da Guerra, de Sun-Tzu (544-496 a.C.), o general chinês, estrategista de guerra e filósofo, apresenta várias estratégias para vencer na guerra, e uma muito usada até os dias de hoje, inclusive na política, chama-se “dividir para conquistar”: quem deseja liderar promove desconfiança entre as pessoas e infla seus egos, dando-lhes motivos para separar as forças. Ao competirem entre si, elas se enfraquecem, e esse “quem” obtém controle sobre tudo, vencendo a guerra.
Recentemente, assisti ao filme A Mulher Rei, que fala sobre essa parte da história e conta com um elenco apaixonante de mulheres negras, em sua maioria retintas. As personagens Agojie (mulheres guerreiras) eram lideradas por Viola Davis no papel de Nanisca, uma pessoa forte, inteligente, disciplinada em seu posto de general militar, e também sensível, sagaz e muito habilidosa para lidar com as tramas da corte e das relações humanas.
Dirigido e roteirizado por mulheres, o filme mostra o Reino de Daomé, um dos locais mais poderosos da África nos séculos XVII e XIX, e o tráfico negreiro como uma fonte de renda maior do que ofertar produtos como azeite de dendê, entre outros de produção local. Nesse cenário, as mulheres que realmente existiram na história da região são fundamentais para suprir a falta de homens nas frentes militares, e o poder das guerreiras cresceu, protegendo o rei e tornando-se, depois, parte da resistência à dominação do território por negociantes europeus.
Quero trazer um paralelo entre o filme e a realidade: vale lembrar que as regiões de periferia surgem a partir de um movimento de exclusão social e habitacional das pessoas negras libertas no dia seguinte a 13 de maio de 1888. Diferentemente de um reino que cuida, essas pessoas se viram sem casa, sem alimento e sem identidade da noite para o dia, sem recursos para trabalhar, tendo que ocupar áreas mais remotas, onde podiam se aquilombar e formar comunidades com os recursos naturais disponíveis para conseguirem subsistir, sendo reféns do racismo ambiental e estrutural que se fazia presente e ainda é parte do processo de exclusão.
Em um mês em que há tantas demandas para pessoas negras falarem em espaços onde não são maioria, e os privilégios ainda estão entre pessoas não negras, para as quais muitas vezes a cota é a única política de inclusão e diversidade, as pessoas que vivem a exclusão e sofrem com marcadores sociais como classe social, gênero e cor de pele se veem nas pessoas negras que protagonizam falas nos espaços de poder, fortalecem-se na identidade negra e se permitem “esperançar”, assim como dizia Freire[2], sobre as possíveis mudanças que podem ser alcançadas a partir de estudos, trabalho e até mesmo empreendedorismo.
Hoje, quando jovens negros adentram escolas, universidades, teatros, restaurantes e shoppings, pode parecer algo “natural” e que nem mereceria nota em um artigo para a mídia, mas o acesso à educação, por exemplo, por um período, foi proibido por lei para pessoas não brancas em todo o mundo. Se olharmos sob o ponto de vista de pessoas negras, o que vemos? Que negro é educador nesses espaços, médico, dono de negócio ou detém o poder de decidir por outras pessoas? Quem são as pessoas negras que estão à frente das mudanças no Governo? Quem são as pessoas negras que a história mostra como capazes de fazer diferença para elas e para o mundo? Até mesmo na música, na arte, a maioria das ocupações das pessoas negras que as tornam protagonistas no palco depende de investimentos que se originam de pessoas não negras.
Apenas um mês por ano não é suficiente. A história das pessoas negras no Brasil precisa ser reescrita todos os dias e registrada a partir da melhoria na qualidade de vida das pessoas, no acesso à educação e às oportunidades de mobilidade social. Exercitar a SANKOFA o tempo todo pode ser muito exaustivo. Resistir e exigir direitos que devem ser para todas as pessoas e que nos são negados por nossa cor de pele, nosso CEP, entre outros marcadores sociais sobre os quais temos pouco ou nenhum poder de escolha ou de influenciar as mudanças, é construção de legado.
O bom combate segue, e convido você, que leu este artigo, a fazer uma escolha entre não querer se envolver ou ser antirracista, deixando de ser conivente com tudo que tem acontecido. Caso opte pela segunda opção, proponho aprender mais sobre negritude, ler e ver filmes, pesquisar, conhecer nossas histórias e contribuições para melhorar o mundo. Tente aprender sobre as tecnologias ancestrais que aplicamos em nosso dia a dia para lidar com tantas barreiras, pois elas podem agregar muito em sua empresa e vida, além de melhorar as nossas. Queremos voltar a contar nossas próprias histórias, e, parafraseando Neusa Santos Souza (Tornar-se negro, 1983, p. 17): “Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade”.
[1] Há muitos grupos de poder aquisitivo que mobilizam recursos para explorar territórios, extrair riquezas de lugares ao redor do mundo, apesar de a história destacar as navegações europeias populadas por pessoas brancas, outros povos exploraram e exploram regiões ao redor do mundo, sendo os “não negros” citados no texto.
[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 58. ed. São Paulo: Paz & Terra, 1997.