O recente caso de trabalho análogo à escravidão envolvendo trabalhadores do setor vinícola em Bento Gonçalves (RS) chocou a opinião pública e manchou com tintas fortes a reputação das marcas envolvidas.
A reação da sociedade parece óbvia. Não há como ficar indiferente diante do fato de que os cerca de 200 trabalhadores resgatados, além de relatarem ter sofrido violência física (com direito a eletrochoques e spray de pimenta), eram mantidos em condições insalubres e ainda foram vítimas de exploração econômica e agiotagem.
Entretanto, tão chocante quanto as condições em que estes trabalhadores foram encontrados, é pensar que grandes empresas tradicionais do setor, ainda façam uso de práticas arcaicas de gestão, que não incluem um modelo confiável de rastreamento da sua cadeia fornecedora.
Em 1996, o grande escândalo envolvendo a Nike e o uso de mão de obra infantil no Paquistão já parecia ter dado a lição. De lá pra cá, empresas conectadas com o nosso tempo certificam, de ponta a ponta, os processos adotados por terceiros e asseguram normas básicas de monitoramento da relação com seus fornecedores, incluindo canais de denúncia e escuta ativa. Elas efetivamente vasculham o porão de suas marcas, dentro e fora dos domínios da empresa, para não terem que dar, em um momento de crise, a resposta descabida de que “não sabiam o que se passava”.
Mas, convenhamos, adotar essas práticas requer um certo esforço e, acima de tudo, a convicção de que exploração à serviço do lucro já não tem lugar no nosso marco civilizatório.
Existem dezenas de avaliações ESG que dariam pistas claras de que algo não anda bem. Falamos de GRI (Global Reporting Initiative), B-Impact Assessment (ferramenta de mensuração de impacto do Sistema B), SASB (Conselho de Padrões Contábeis de Sustentabilidade), ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial) e algumas outras.
É uma vergonha que casos como esse ainda aconteçam em um Brasil onde o “Agro se diz POP”, o que pressupõe estar antenado com o século XXI. Pior ainda é observar que essa prática não se restringe às fronteiras do setor agropecuário: segundo o Ministério do Trabalho e Previdência, nos últimos 10 anos, mais de 13,6 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados no Brasil. No ano passado, foram 1.930, o maior número desde 2013 e um aumento de 106% em relação a 2020, quando os registros mostram 936 pessoas. E mais: este número pode ser ainda maior, se considerarmos que situações como esta ainda são “naturalizadas” país afora.
As típicas frases “essa gestão era de responsabilidade de terceiros” ou “sempre adotamos práticas conforme a legislação vigente” , já não convencem consumidores e demais setores da sociedade, que estão cada vez mais atentos e engajados em suas práticas de consumo.
Em pesquisa realizada pela Associação Brasileira do Varejo Têxtil, setor que tem lutado de maneira ativa junto aos seus fornecedores, para banir condições pouco dignas de trabalho na sua cadeia, “o combate ao racismo e ao trabalho forçado são as iniciativas mais importantes que os brasileiros acreditam que a indústria têxtil deveria promover”. Na mesma pesquisa, 3 em cada 4 pessoas dizem estar dispostas a pagar um pouco mais por produtos de empresas comprometidas com causas sociais e ambientais; 8 em cada 10 compradores da categoria deixariam de comprar produtos de marcas que gostam se descobrissem que estão envolvidas em escândalos; 9 em cada 10 dariam preferência ou passariam a comprar apenas roupas com selo de certificação que assegure que elas foram produzidas sem mão de obra escrava.
É possível que as empresas envolvidas no caso de Bento Gonçalves (RS) tenham sido “apenas” negligentes no monitoramento da sua cadeia de fornecimento, mas essa vista grossa traz consequências claras que afetam não apenas a reputação de sua marca, mas o próprio futuro de seus negócios.
Enfim, um trago bastante amargo para se degustar.
* Mônica Gregori é Diretora-executiva da CAUSE, consultoria dedicada à gestão de causas, via estratégias de comunicação, engajamento, advocacy e ESG.