Por Ariane Feijó
No início da semana passada postei uma provocação no meu Facebook. Fez um ano que aquela tragédia horrível aconteceu em Santa Maria por descaso, descumprimento, corrupção ou todas as alternativas anteriores dos donos da boate. Culpa do (des)interesse privado e não do (des)interesse público.
Em meio a todo o barulho midiático, de comentários cheios de opinião e raiva no Facebook, mais uma vez a rede social provou a que veio: amplificar o word of mouth, o “Vejam como eu sou uma pessoa consciente”, o “Olhem como as minhas opiniões são bem embasadas”.
Acho fantástico que nos sintamos tocados e tenhamos falado tanto. Sim, é importante. Mas enquanto profissionais de marketing e eventos, é vergonhoso que as nossas atitudes para evitar trágedias futuras não apareçam e sejam compartilhadas, acompanhadas, aprimoradas.
Para mim, a pergunta que não quer calar é: o que, de fato, mudou na prevenção de acidentes no mercado de eventos nestes meses que sucederam a maior desgraça vista nos últimos anos no Brasil?
Com a ajuda do Promoview, tentei descobrir, mas tive apenas duas respostas. Igual, aqui vai este artigo que gostaria mesmo que você lesse até o fim. Para ajudar, vou dar uma amenizada com um vídeo engraçadíssimo (?), que descobri na semana passada, na timeline de um amigo:
Que metáforas para os nossos eventos eu enxergo neste vídeo?
- Primeiro, a noiva entrando e, em meio à empolgação, sequer se deu conta (!) que o vestido estava sendo queimado pelos fogos indoor, colocados no chão. É exatamente assim que entramos, como espectadores, em festas e eventos: sequer pensamos que algo pode dar errado. Quando somos massa, achamos que o cheiro de queimado é a cozinha que deixou passar o bife, mas nunca que podemos estar em vias de morrer carbonizados. Nunca.
- Em seguida, entre inúmeros outros detalhes que vocês, ótimos produtores que estão lendo, certamente conseguirão detectar, os copos atirados para trás. Olá, amigos, e se acertasse na cabeça do tiozinho que estava logo ao lado? A minha metáfora: quando somos massa, esquecemos que atrás de nós também há pessoas. E se algo dá errado, saímos como boiada, correndo, pisoteando. É o nosso instinto de sobrevivência.
- Mais adiante, enfim, aquela brincadeira de rojões ou algum tipo de fogos indoor, DENTRO do espaço fechado. Alguém viu extintores por perto? Aqui se tínhamos alguma dúvida que este ‘evento’ não teve alguém no papel de ‘produtor’, ficou confirmado. Um bom produtor em sã consciência não permitiria uma coisa tão básica ser feita num lugar fechado.
Voltando à questão inicial: se tudo desse errado nesta festa, a culpa seria do governo? Ou seria de quem estava (des)organizando a situação e permitiu que essa sequência tragicômica acontecesse? Se eu estiver errada corrijam-me, mas fico com a segunda opção sem pestanejar.
A responsabilidade da Kiss e tantos outros acidentes em eventos não pode ser delegada ao governo – ou ao “sistema”, como li em centenas de posts por aí. O nosso sistema brasileiro ser um exemplo de impunidade não nos delega o direito de não assumirmos a responsabilidade das vidas que, direta ou indiretamente, passam pelas nossas mãos.
É hipócrita, ainda mais nesta área que é uma das que mais cresce no marketing e na comunicação: a experiência das pessoas com as ideias, produtos e serviços que promovemos.
A ação começa em nós. Agir implica mudar: o verbo mais difícil de ser conjugado. Esse papo de que “No Brasil é mais difícil”, “Aqui a fiscalização é pouca” ou “Posso fazer m* que vai acabar em pizza mesmo” é o mesmo papo que matou todas aquelas pessoas.
Já tive que organizar eventos em espaços públicos pagando taxas altas na Inglaterra, e mesmo desenvolver um plano de prevenção a ataques terroristas que levou duas semanas, num lançamento de produto de apenas 30 minutos com os Estados Unidos. Não foi por ter que pagar ou contratar mais alguém, que se burlaram as regras, criadas para a nossa própria proteção. Elas foram simplesmente seguidas.
Mas digamos que o tal sistema fosse o problema da segurança em eventos. Se esse sistema não existisse, você teria todos os cuidados necessários com a segurança? Se fosse grátis, sem taxas, sem burocracias, você seguiria à risca um plano de segurança? Não tenha vergonha de dizer que não. Mas mude. Pense por um segundo nas consequências do seu ‘tô nem aí’ para o tema. Pense que a próxima vítima do ‘tô nem aí’ de um produtor qualquer pode ser você.
São dois lados da mesma moeda: a fiscalização é pouca e uns usam isso para embolsar mais. A fiscalização é pouca e outros usam isso para se eximir da culpa. E como a culpa é nossa e colocamos em quem queremos, muitos jogam no governo, no dono da boate, nos bombeiros, na burocracia, no sistema.
O sistema somos nós. O mesmo sistema que faz o crowdfunding de sucesso, o show da Ivete Sangalo, o culto da igreja evangélica, o post bem amplificado nas redes sociais. A assessoria de imprensa, o brinde para o PDV.
O mesmo nós que partilha foto do cãozinho, do gatinho, das férias na praia paradisíaca. O mesmo nós que se mobiliza e consegue doações de sangue para o amigo que precisa. A força mobilizatória é a mesma para agir e para reclamar. A diferença, no Brasil, é que ela está sendo usada muito mais, ainda, para reclamar do que para fazer o certo.
Só que para nós, que estamos fazendo diariamente este mercado (ou esta indústria, como preferir) isso tem um peso ainda maior. Não é um peso de “Oh! sejamos responsáveis”. É um peso invisível, que deixa um rastro na vida de outras pessoas. Na experiência da família dos jovens que morreram no auge da vida e que levam consigo de ‘brinde’ uma dor e um trauma insuperáveis.
Somos tão empenhados em produzir campanhas melhores, ter ideias ainda mais criativas, vender e ganhar mais. Daí um dia, quando menos se espera, se está em um evento para pura diversão e morremos. Seja nós, enquanto espectadores, seja nós enquanto produtores, montadores, executores. Devia ser proibido morrer em eventos por acidentes de trabalho.
Vou ficar de olho este ano e tentar descobrir mais do que tem sido feito. O que mudou depois da Kiss nas centenas de agências de marketing promocional. O que mudou na mente dos executivos de marketing, de comunicação, de eventos. Porquê, até agora, acho que essa mudança que tanta gente falou por aí acabou igualzinha ao Brasil: em samba, carnaval e futebol. Com riscos altos e segurança questionável.
Estaremos todos fadados à mediocridade nessas nossas profissões tão fabulosas? Peço desculpa, mas me despeço deste artigo e do time de marketeiros, criativos, comunicadores e correlatos que está colocando toda a força no teclado e força nenhuma na prática. Vocês definitivamente não me representam.
Dedico mais este post à memória das 242 vítimas da boate Kiss. E também à memória de uma única pessoa, a qual eu vi morrer na montagem de um evento, diante dos meus próprios olhos, há alguns anos.