Semana da Mulher

"E se a sustentabilidade fosse 4% do PIB do Brasil? Esse é o tamanho do mercado de eventos", diz Luciana Lancerotti

Estreando uma série de entrevistas especiais, a ex-CMO da Microsoft conversa com o Promoview sobre transição de carreira, empreendedorismo feminino e ESG

Nesta segunda-feira (3), damos início a uma série de entrevistas especiais da Semana da Mulher, que vão anteceder o Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março. O Promoview conversou com mulheres inspiradoras que atuam no Marketing de grandes marcas para entender suas trajetórias, visões do mercado e métodos de liderança.

A primeira entrevistada é Luciana Lancerotti, especialista em Design de Impacto, ex-CMO da Microsoft e empreendedora com mais de 32 anos de experiência em grandes corporações. Ao Promoview, Luciana falou sobre a transição de carreira de CMO de uma grande marca à abertura de sua própria empresa, empreendorismo e liderança feminina, além da agenda ESG.

Luciana Lancerotti
Luciana Lancerotti é mentora de carreiras, professora de pós-graduação e consultora em Marketing. Foto: Divulgação

Como você ingressou no mercado de tecnologia? Sentia que era um espaço difícil para ser ocupado por uma mulher?

Luciana: Às vezes, ao pensar na minha trajetória, lembro apenas na Microsoft, onde fiquei por 20 anos. Mas, quando ao analisar minha carreira, percebi que, nos últimos 32 anos, atuei em mercados predominantemente masculinos. Isso é interessante porque, ao longo desse tempo, o mercado mudou muito.

Na adolescência, queria cursar física nuclear. Em conversas familiares, ouvi que não era um espaço para mulheres. Pensei em engenharia e ouvi o mesmo. E era verdade: nas salas, havia uma ou duas mulheres entre 40 ou 45 alunos. Muitas desistiam, pois a empregabilidade também era um desafio.

Fui me moldando, acabei em design industrial e depois em marketing e comunicação, onde atuo até hoje. Mas sempre esteve presente essa ideia de que certos espaços não eram para mulheres. A boa notícia é que houve avanços. Não diria nos últimos 10 anos, mas nos últimos cinco, a conversa se intensificou.

No setor de marketing e comunicação, há uma predominância feminina. Na sua opinião, por que isso não se reflete nos cargos de liderança?

Luciana: Existem alguns fatores. Primeiro, a indústria em que você atua. Setores como moda ou beleza têm mais mulheres, enquanto metalúrgica e automobilística atraem menos. Mas, se há uma predominância feminina desde a formação, por que na liderança isso não se reflete?

Muitas vezes, nós mesmas nos sabotamos. Eu faço mentoria para grupos de mulheres e vejo isso o tempo todo. No meu caso, meu maior medo era parecer arrogante ou não dar conta. Várias vezes recusei oportunidades por medo.

Um exemplo marcante: estava grávida de seis meses quando me ofereceram um cargo de diretoria em uma área técnica. Recusei porque achava um absurdo assumir e sair de licença logo depois. Até que um presidente da empresa me chamou e disse: “Luciana, é você. Se precisar sair de licença agora, volte depois”. Percebi que eu mesma estava me boicotando. Se a empresa acreditava em mim, por que eu não poderia acreditar?

Você mencionou que tinha medo de parecer arrogante. Como esses estereótipos afetam a liderança feminina?

Luciana: O tempo todo nos cobram um comportamento “adequado”. Se estamos sérias, acham que estamos de mau humor. Ao mesmo tempo, há essa pressão para nos “masculinizarmos” para sermos respeitadas. Só que, ao fazer isso, perdemos algo essencial: nosso olhar mais cuidadoso e coletivo.

Luciana Lancerotti

No início da carreira, tentei ser mais dura para ser ouvida. Mas percebi que estava apenas disputando um espaço com homens, e não ocupando meu espaço como mulher. Precisamos valorizar nossa forma de liderar, que traz mais leveza e empatia, sem abrir mão da objetividade.

Luciana Lancerotti

Já precisei demitir muitas pessoas, e sempre fiz isso com respeito. Porque, no fim, o cuidado com as pessoas também é uma forma de liderança.

Quando falamos em cuidado, falamos sobre uma responsabilidade que historicamente foi atribuída às mulheres. A força feminina foi essencial para o avanço da agenda ESG, você concorda?

Luciana: Sim, eu concordo, e isso tem a ver com a essência feminina. Prefiro falar de “energia feminina” e “energia masculina” ao invés de gênero. Porque o feminino tem essa característica do cuidado, da integração. Em inglês, a palavra care é mais forte: não é só sobre proteger, mas sobre acolher e olhar para o todo.

Mas cuidado não é sinônimo de ser boazinha. Cuidar também envolve tomar decisões difíceis, como uma mãe que precisa dar limites aos filhos. Então a gente também está aprendendo a fazer essa dose, a falar que ‘eu quero que você cuide do banho do filho’, só que ele vai dar o banho do jeito dele, não do jeito que a mãe dá [risos]. Então, eu acho que nessa busca por equilíbrio, a gente está em um estágio muito legal.

É por isso que as mulheres estão liderando a sustentabilidade: porque sempre buscamos equacionar todas as áreas da vida. E, no final, também gerenciamos as finanças. Quantas mulheres não são as responsáveis pelo dinheiro da casa, decidindo prioridades? Isso também é sustentabilidade.

Falamos sobre equilíbrio no lar, mas e nas empresas? Você considera que delegar tarefas é um desafio?

Luciana: Antes de delegar, precisamos formar um bom time. Poucas empresas preparam líderes. Normalmente, somos jogados na liderança e temos que aprender sozinhos.

Na seleção de equipe, priorizo valores inegociáveis, como respeito. Se a pessoa não tem todas as competências técnicas, mas tem boa atitude, eu prefiro, porque ela pode aprender. O que não funciona é um profissional tecnicamente excelente, mas que prejudica o ambiente.

Quando confiamos no time, delegar fica mais fácil. Claro, podemos querer dar “pitacos”, mas, se os valores e objetivos estão alinhados, as pessoas vão entregar um bom trabalho.

Líderes precisam ser transparentes. Meu papel não é operar a máquina, e sim garantir que o time esteja funcionando bem. É um trabalho diário e consciente.

E como foi a sua transição de carreira? Você sentiu um julgamento por se afastar do ambiente corporativo?

Luciana: Existe uma conversa muito forte entre nós, mulheres, sobre a questão da meia-idade. Parece que, ao chegarmos aos 40 anos, surge aquela pergunta: “O que estou fazendo aqui? Qual o sentido de tudo isso?”.

Gosto de contar sobre minha transição de carreira nesse contexto, pois, aos 43 ou 44 anos, muitas pessoas olharam para minha mudança e disseram: “Nossa, foi super tranquila”. Mas qualquer transição precisa ser bem elaborada e cuidada. No meu caso, saí de um mundo corporativo que passa a falsa segurança do emprego fixo, dos benefícios e da estabilidade. Quando você vai para o empreendedorismo, cada dia é um dia. Tem semanas em que fecho dois projetos e outras em que não fecho nenhum. Como lidar com isso? Como se adaptar?

A educação financeira foi essencial para mim. Durante sete anos antes de sair da Microsoft, fiz mentorias de transição de carreira. A tendência natural quando enfrentamos desafios é voltar ao padrão conhecido. Por isso, se preparar emocional e financeiramente é essencial. Mas também é importante aceitar que, se precisar voltar, está tudo bem

Luciana Lancerotti

Eu tinha 15, 16 anos de Microsoft e sabia que estava chegando a um teto na empresa. Não queria ir para vendas, nem atuar em canais ou trabalhar fora do país. Comecei a refletir sobre o que realmente me preenchia, e foi nesse momento que me deparei com a sustentabilidade dentro do marketing. Quando houve o layoff em agosto de 2023, eu poderia ter ficado. Mas meu coração disse: “Esse é o momento”. E eu estava preparada para ele.

E quais os desafios de ser uma empreendedora?

Luciana: Os desafios estão muito ligados à instabilidade financeira. Mas a certeza de que estou onde quero estar me motiva a continuar. É um renascimento. O mais interessante é que muitos dos meus clientes são ex-colegas, agências e fornecedores do mercado onde atuei. Isso mostra a importância de construir um legado e manter relações verdadeiras.

No entanto, defendo que a transição de carreira precisa ser planejada. Não é algo que se faz de um dia para o outro. A não ser que o ambiente seja tóxico ou esteja afetando sua saúde, é necessário um planejamento estruturado. Hoje, tenho a certeza de que quero seguir carreira solo. Já liderei equipes, mas agora quero trabalhar com pessoas, não ter pessoas trabalhando para mim.

Pode compartilhar um pouquinho de como é o seu trabalho hoje?

Luciana: Atuo em seis pilares, sendo três baseados em parcerias. Dou aula em pós-graduação, em cursos com audiências bem diferentes, como Game Business e uma área voltada para médicos. Também sou mentora no grupo Todas, voltado para mulheres, e atuo como conselheira em uma Social Tech.

Os outros três pilares envolvem workshops, treinamentos e consultorias para transformar eventos e campanhas em ações mais sustentáveis, além de palestras. Meu tema favorito é “O que o seu travesseiro te diz?”, onde falo sobre escolhas conscientes e impacto positivo.

Na sua opinião, qual é o maior desafio atual da área de Comunicação?

Luciana: Estamos vivendo um momento de transição e gestão do caos. Acredito que precisamos recuperar a esperança e parar de culpar apenas o sistema. Todos podemos ser agentes de mudança.

A era do cancelamento veio com força, e o julgamento constante nos consome. Mas, antes de criticar, devemos nos perguntar: “Eu estou fazendo o melhor que posso?”. Cada um entrega ao mundo o melhor que tem. Precisamos exercitar mais esse olhar.

A sua especialização é na área de eventos. Como você vê o mercado de eventos atualmente?

Luciana: Na Microsoft, meu time realizava cerca de 350 eventos por ano. Sempre gostei dessa área porque ela é um organismo vivo, que exige flexibilidade e soluções rápidas.

Hoje, a maioria das empresas me chama para atuar em eventos porque eles são palpáveis quando falamos de ESG e sustentabilidade. Minha metodologia de circularidade consiste em pensar “De onde vem? Para onde vai? Qual é o impacto?”. Aplico esses questionamentos desde o briefing até a execução, conectando-os aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Desde o momento zero de briefing, essas perguntas permeiam tudo, como o material que eu vou montar o estande ou o catering que eu vou contratar de alimentos e bebidas. Então eu combino isso com os 17 objetivos sustentáveis da ONU.

Por exemplo, um dos objetivos é do combate à fome. Mas eu consigo com evento fazer isso? Poxa, eu não consigo atuar diretamente, mas será que eu não posso fazer uma parceria com a Food for Save, por exemplo, que já olha para essa parte? Essa, esse é um pensamento completo.

Em alguns casos eu consigo achar soluções maravilhosas. E tem outros que a pessoa fala assim: “Não, é um brand guide da da corporação, a lona tem que ser assim”. E aí a gente volta e fala, a partir da lona, eu consegui achar um fornecedor que use menos química na tinta. Ou, então, podemos fazer as bolsas ecológicas de reuso de lona. Por que que nós vamos fazer novas ecobags, se eu posso usar a própria lona do meu evento? Chamar uma associação de mão de obra de mulheres costureiras, que geram renda para suas famílias, eu recompro essas bolsas.

Esse pensamento é o que mais me encanta hoje em dia e por isso que eventos acabou sendo o principal pilar de atuação nesse momento. Eu falo que se eu conseguir que 4% do PIB do Brasil se transforme em uma ação sustentável, esse é o tamanho do mercado de eventos brasileiro. É muita coisa. dá para mover muita gente, muito investimento, muito impacto ambiental e social.

Luciana Lancerotti

Para finalizar, como você se sente hoje em relação à sua carreira?

Luciana: Estou muito feliz. Recentemente, em uma aula de pós, uma aluna me disse: “Tudo que eu quero é ser você”, porque percebeu a paixão com que falo sobre meu trabalho. Para mim, essa é a verdadeira busca: encontrar algo que nos traga felicidade e satisfação.

Claro que desafios existem, e estou sempre ajustando meu modelo de negócio. Mas sigo com gratidão por tudo o que vivi e entusiasmo pelo futuro.

Kássia Calonassi
Kássia Calonassi Head de Conteúdo
Head de Conteúdo
Jornalista e Estrategista de Conteúdo. Líder de Redação, Social Media e Newsletter no Promoview. Pesquisadora de Brand Experience e Live Marketing pela UFPR.