Poucos dias antes do início do maior reality show do Brasil, a Americanas, patrocinadora Master do Big Brother Brasil, comunicou aos seus acionistas uma inconsistência de 40 bilhões de reais ao longo dos últimos anos.
No comunicado, a Americanas S.A explica que sua área contábil identificou a existência de financiamento de compras em valores que totalizariam o valor bilionário. A companhia deve às instituições financeiras, mas as cobranças não se encontram adequadamente refletidas nas demonstrações financeiras de 30 de setembro de 2022, data do balanço.
Para ser mais claro, a empresa se deu conta que o rombo não havia sido registrado de forma apropriada nos balanços corporativos da empresa. 20 bilhões de reais, o tamanho do rombo, é quase o valor de mercado da Magazine Luiza (20,2 bi) e das Lojas Renner (20,22 bi) após o pregão do dia 11.
“Risco sacado”: prática contábil é comum e prejudicial para o setor de live marketing, que sofre com perda de rentabilidade
À CNN, o economista e professor da FGV Roberto Kanter, especialista em varejo, disse que a prática não é incomum entre as grandes companhias e explicou como ela pode afetar na contabilidade disponibilizada no balanço da companhia.
“Quando a Americanas faz a compra dos fornecedores, geralmente coloca um prazo bastante dilatado para o pagamento, muitas vezes chega até 180 dias. Como ela compra em grandes volumes, os fornecedores aceitam vender o produto e receber neste prazo. Mas, dentro de uma semana após a venda ser feita, o intermediário financeiro entra em contato com o vendedor e se oferece para adiantar o montante”, afirmou.
“Como os fornecedores podem ter prazos mais apertados, eles aceitam. E aí a dívida passa a ser com o intermediário financeiro. O que aconteceu foi que em vez de a Americanas lançar em seu balanço como ‘dívidas ao banco’, ela permaneceu lançando como ‘dívida ao fornecedor’, e isso impacta em uma gestão de balanço diferente, principalmente sobre os juros”, acrescentou.
Este movimento de “risco sacado” conhecido por “fotfait” é considerado uma prática hostil pela maioria das agências e fornecedores do mercado de live marketing.
Isso porque a maioria das despesas com eventos precisam ser pagas à vista como cachê de artistas, palestrantes, mestres de cerimônias, staff, bilhetes aéreos e hospedagens além de outros serviços mas, principalmente, porque a venda de serviços não tem o mesmo (grande) volume dos fornecedores de varejo.
“As áreas de compras, especialmente de empresas como a AMBEV, que é uma grande contratante de serviços de live marketing, não distinguem a característica de cada tipo de fornecedor, colocam todos dentro da mesma política de negociação e as agências sofrem com o prazo de 180 dias para receber e então a sua rentabilidade é fortemente afetada”, observa Júlio Feijó Neto, editor do Anuário Brasileiro de Live Marketing.
Repercussões e análises do mercado. Diretores venderam ações antes do comunicado oficial
Após o problema vir à tona, analistas do mercado viram com ressalvas os dados de venda de ações por diretores da Americanas nos últimos meses.
“A diretoria vendeu muitos papéis da própria empresa. Isso nos faz crer que era algo que sabiam e não reportaram. Além disso, na call (videoconferência feita com investidores), Rial deixou escapar que talvez não existisse uma vontade dos administradores de falar sobre o problema” — observa Pedro Menin, sócio-fundador da casa de análise financeira Quantzed.
Para João Frota, estrategista em renda variável da Senso Corretora, a hipótese de que o erro contábil tenha ocorrido por uma década, como disse Rial, enfraquece a tese de que se tratava apenas de um possível deslize no balanço. Victor Bueno, analista da Nord Research, ressalta que o fato de a inconsistência não ser algo isolado preocupa:
“Isso já vem sendo contabilizado há vários anos. É muito cedo para falar de fraude contábil, mas como não apareceu antes, para membros da empresa ou para a auditoria?, questiona.
Com tudo isso o economista e empresário Jorge Paulo Lemann, pessoa mais rica do Brasil na atualidade, segundo o ranking de bilionários da Forbes, perdeu US$ 329 milhões — o equivalente a R$ 1,68 bilhão — de sua fortuna de US$ 16 bilhões nesta quinta-feira (12), como consequência da forte queda das ações da Americanas no último pregão da bolsa.
Após os acontecimentos, o CEO da empresa, Sergio Rial, optou por deixar a companhia. Anunciado no ano passado como o novo líder da empresa a partir de 2023, Rial assumiu a presidência há poucos dias, no lugar de Miguel Gutierrez, que liderou a operação pelos últimos 20 anos.
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Mesmo com as informações preliminares, as corretoras e casas de análise começam a mudar as recomendações sobre as ações da companhia. Em um relatório, a Genial Investimentos passou de recomendação de compra para venda, além de reduzir o preço-alvo das ações da empresa de 28,40 reais para 9,40, cerca de 3 vezes menos.
“A primeira impressão é a pior possível, tanto na questão de governança corporativa, quanto na contábil”, analisa a Genial. “A companhia realizava operações chamadas de Risco Sacado, onde repassa a responsabilidade do pagamento a fornecedores para instituições financeiras. Isso, por sua vez, reduz a conta de Fornecedores no passivo, que teve seu valor declarado em R$ 5 bilhões no balanço do terceiro trimestre”, completa.
Além de Rial, o diretor de relações com investidores, André Covre, também se desligou da empresa. O Conselho de Administração da empresa nomeou o executivo João Guerra para ambas as funções de forma interina.
A Americanas também comunica que seu Conselho de Administração decidiu criar um comitê independente para apurar as “circunstâncias que ocasionaram as referidas inconsistências contábeis” e que o comitê terá todas as condições necessárias para conduzir os trabalhos. Sergio Rial irá assessorar a companhia nesse processo.
Quem também entrou na polêmica foi o Procon-SP, que notificou a empresa questionando sobre os impactos para os consumidores. Além de informar até que ponto ficam comprometidas as compras efetuadas pelos clientes e detalhar quantas pessoas serão afetadas, a empresa deverá esclarecer se as reclamações recebidas dos últimos 90 dias têm relação com os problemas noticiados e, em caso positivo, qual o plano de ação da empresa para solução.
No ano passado, o grupo teve quase 9,5 mil queixas registradas por consumidores que tiveram problemas com suas compras. A empresa tem até o próximo dia 17 para responder aos questionamentos do Procon-SP.