Se tem uma coisa boa no trânsito de São Paulo é o fato de acabarmos nos informando do que está acontecendo no planeta, no país e na cidade. Esta semana, estava eu, mais uma vez, em um desses engarrafamentos de nossa cidade e ouvi uma reportagem sobre as personalidades negras, cinco no total, a serem homenageadas com a produção e a instalação de estátuas na cidade. Achei a ideia ótima. Afinal, por que não homenagear aqueles que ajudaram no desenvolvimento de nossa história
Entre os cinco nomes eleitos pelo voto popular, estava o de Lélia Gonzales. Fiquei intrigado. Será que era a pessoa que eu estava imaginando?
Esta iniciativa faz parte de projeto iniciado em 2021 com objetivo de celebrar a história negra de São Paulo e do país.
“Ao incluir no patrimônio da cidade estátuas de personalidades negras, o objetivo não é só homenagear essas pessoas que tiveram grande relevância para a construção e o fortalecimento da comunidade negra, mas também contar outra versão da história”, foi o que afirmou Aline Torres, secretária municipal de Cultura, em uma reportagem. “Precisamos, para entendermos o futuro, honrar o nosso passado“, concluiu ela.
Levei um tempo, por conta de alguns afazeres pessoais e hoje, finalmente, pude comprovar que a Lélia em questão era exatamente quem eu pensei que fosse.
Já não lembro a data perfeitamente, mas a cena é viva em minha mente. Havia passado para o curso de comunicação da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Primeiro dia. Primeira aula. Matéria: Epistemologia. Uau, pensei comigo mesmo, que negócio com nome tão sofisticado será esse?
A passagem da escola para uma universidade, para mim, era algo disruptivo. Afinal, não precisaria mais dar satisfação a ninguém, se eu não quisesse, a respeito de notas, faltas, broncas etc. Assim, quando entrei na sala para a aula inaugural do curso, estava extremamente curioso sobre como seria a nossa professora de Epistemologia, e que se chamava Lélia Gonzales.
Para os nativos digitais que me dão a honra de sua leitura, devo dizer que, no meio dos anos 1970, nada de internet, Google, Bing etc. Dessa forma, não tínhamos a menor ideia de como seria nossa professora.
A sala já estava cheia. E na porta apareceu uma mulher negra (ou preta, não sei mais o que é politicamente correto hoje, mas não importa) linda, com os cabelos penteados como os de uma princesa africana, um vestido maravilhoso, estampado com desenhos de alguma região do continente, cheia de colares de contas e sementes. Dirigiu-se para a frente da sala, deixou suas coisas na mesa do professor e passou a dizer quem ela era.
Sem nem saber direito o que Epistemologia significava, já comecei a achar interessante, pelos assuntos que estavam sendo descritos. Ela indicou o livro que deveríamos comprar: A epistemologia, de Gaston Bachelard. Acho que este era o nome correto.
Logo após essa introdução, sabendo da preocupação dos calouros em relação a aspectos como provas, por exemplo, ela já foi adiantando o assunto, dizendo: “Não se preocupem com as provas; vocês vão poder consultar o livro e seus apontamentos de classe, sem problemas. E eu asseguro a vocês, em minhas provas, ninguém consegue colar.” Uma risada geral, em tom de desafio. Quem seria o cara que iria conseguir colar na prova da Profa. Lélia?
Chegou o dia da prova. Todos ansiosos para ver quem seria o colega que ia conseguir colar de outro. Meus amigos, nossa professora chegou. E avisou que a prova ia começar.
Pediu que cada um tirasse duas ou três folhas de caderno, pusessem seus nomes e aguardassem as questões. Então, nossa Profa. Lélia começou a ditar as questões:
“Número 1 – Escolham três temas abordados em sala de aula, de sua preferência, formulem 3 questões e respondam”. Era essa a prova de nossa professora de epistemologia.
Os grandes sabichões que estavam prontos para colar colocaram as barbas de molho. Como seria possível colar numa prova dessa natureza? Confesso a vocês que essa foi uma das provas mais difíceis com que já me deparei. E tanto me marcou que até hoje ainda me lembro de minha Mestra.
Mas a história não termina aqui. Passados os primeiros meses, um dia ela me chamou na sala dos professores para uma pergunta muito simples: Você topa ser meu aluno monitor? Topei, claro. Corrigi provas, trabalhos enviados. Cheguei até a dar nota. Tudo isso sob sua supervisão e com direito a explicações e miniaulas, fora de sala. Foi uma experiência muito interessante.
Fiz a pesquisa que todos nós fazemos, quando queremos achar alguém. Perguntei ao Google.
Ao procurar os dados de minha professora, depois que ouvi a nota do rádio, descobri que Lélia de Almeida nasceu no dia 1º de fevereiro de 1935 na cidade de Belo Horizonte. Era filha do ferroviário negro Accacio Serafim d’ Almeida e da empregada doméstica e indígena, Orcinda Serafim d’ Almeida.
Lélia era a décima-sétima filha de 18 irmãos, entre eles o jogador de futebol Jaime de Almeida, que jogou pelo Flamengo .
A oportunidade de entrar para o clube onde seu irmão passou a ser jogador, foi o que permitiu que a família de Lélia se mudar para o Rio de Janeiro em 1942 buscando melhores condições de vida. Ela faleceu aos 59 anos, em 1994.
Fiquei triste em saber. Queria poder retomar o contato com ela, mas a vida passa e de vez em quando nos traz surpresas não muito agradáveis. Por isso, para esta semana, onde estava em busca de um tema importante para tratar em minha coluna, achei que falar sobre uma das figuras que mais influenciaram minhas andanças seria uma justa e singela homenagem. Lembrando, também, que a influência de Lélia se estendeu além do meu universo.
Agradeço muito os ensinamentos de minha Mestra e, com muito carinho, dedico este texto a Lélia Gonzales, minha professora de epistemologia, do curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, turma de 1972.