A menos de dois meses da Copa do Mundo, o Brasil recebe nesta semana personalidades de ao menos 95 países (quase o triplo do número de nações que disputarão o Mundial de futebol) para debater sobre os rumos da internet e os responsáveis pelo seu funcionamento.
A conferência internacional NETMundial, que acontece nos próximos dias 23 e 24 em São Paulo, vai tratar de governança da internet. O evento atrai forte expectativa do mundo todo, que enxerga nele o início de um processo de mudanças.
Mas mudar o que e para quê?
Por não ser “governada” por ninguém, o modelo de gestão da internet ganha o nome de “governança”. Isso porque são necessárias regras, padrões técnicos e um constante trabalho de atualização da estrutura para permitir que pessoas do mundo inteiro se comuniquem em uma única rede sem barreiras. Esse trabalho é feito por diversas instituições, sendo a principal a ICANN, sigla em inglês para Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números. Na NETmundial, o ICANN é o alvo de todo o debate.
“O que se espera é o fim da supervisão do Departamento de Comércio dos EUA sobre o ICANN e a IANA (entidade que atribui os “números” da internet, como os endereços de IP). É anacrônico que um recurso usado no mundo todo esteja submetido à chancela do governo americano”, diz Marília Maciel, coordenadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e membro do comitê executivo da NETmundial, citando o braço da ICANN responsável pela gestão de números IP e endereços. “Hoje, os EUA poderiam impedir que nomes de dominío como .xxx (para sites de pornografia) fossem criados. Eles nunca abusaram, mas é incômodo que esse poder exista.”
Para o coordenador da NETmundial e secretário do Ministério de Ciência e Tecnologia, Virgílio Almeida, o fim da “supervisão” do governo americano sobre a ICANN é um pedido do governo brasileiro. “A globalização da ICANN e das funções da IANA é uma reivindicação global e do Brasil. Uma entidade privada da Califórnia não pode ficar resolvendo questões de países, como a disputa por nomes da internet”, diz.
Migração
O Departamento de Comércio dos EUA surpreendeu ao anunciar em março que pensa em não renovar seu contrato de supervisão das funções da IANA, que vence em setembro de 2015, passando tal função para uma organização multissetorial sob a coordenação da ICANN. A decisão foi comemorada e, para Almeida, fortalece a conferência. “A NETmundial tem que debater e prover sugestões para essa migração.”
Após o anúncio do governo americano surgiram reações internas contrárias, temendo que o fim do seu controle sobre a internet permitisse que países com histórico de restrição e censura online pudessem assumir as rédeas. Christian Whiton, um ex-assistente do Departamento de Estado do governo de George W. Bush, disse que a “administração americana da internet foi exemplar” e que não havia razão para “perdê-la”. “Essa atitude de Obama equivale à de Carter quando se desfez do Canal do Panamá, com a diferença de possíveis consequências ainda mais graves.”
O temor reflete um dos assuntos que poderiam ser debatidos na NETmundial: o controle da web deve ser debatido apenas entre países (tendência conhecida como multilateralismo), como na ONU, por meio da União Internacional de Telecomunicações (UIT), ou por grupos diversos que contemplem especialistas técnicos, acadêmicos, membros do setor privado, sociedade civil e também de governos (opção chamada de multissetorial)? O governo americano já adiantou que considerava “sábio” evitar debates controversos como esse.
O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Carlos Affonso Souza, diz que o multilateralismo poderia ganhar força depois das revelações do ex-agente da NSA, Edward Snowden, projetando um cenário em que os países se fechariam para não serem espionados. Mas não foi bem assim. “A grande surpresa foi o fato de haver uma reafirmação do modelo multissetorial. Governos espionados como Brasil e Alemanha não tomaram as revelações como a gota d’água a ponto de se tornarem opositores de sistemas americanos como o ICANN.” A visita do diretor da ICANN, Fadi Chehadé, em outubro, à presidente Dilma Rousseff e a escolha do País para sediar a conferência desta semana não teriam sido por acaso.
Participante de reuniões da ICANN durante anos, Affonso pondera que os mecanismos de controle da internet estão nos EUA por razões históricas. Foi lá que se desenvolveu a (precursora da internet) ARPANet e o protocolo DNS e, por fim, a ICANN. “Além disso, a maioria dos serviços utilizados na internet hoje, como Google e Facebook, está lá e adota a lei americana sobre os contratos que celebram”, lembra. “É natural, com o uso difundido da internet, que o resto do mundo pedisse por participação.”
Abertura
A própria instituição vem estudando formas de se abrir. Uma delas é a chamada ICANN Fellowship, na qual subsidia a ida de qualquer pessoa a suas reuniões. O ativista e publicitário João Carlos Caribé participou dos encontros da entidade na China, África do Sul e Cingapura dessa maneira. “O programa exige dedicação, não vá pensando que você vai para passear, as reuniões começam às 7h da manhã no domingo, mas permite a interação com diferentes interlocutores de diferentes setores da ICANN”, diz. “É sem dúvida a melhor porta de entrada.”
Para Marília Maciel, da Fundação Getúlio Vargas, apesar das ações da ICANN, as chances de participação de países pouco desenvolvidos são poucas, o que os mantêm à margem do debate. “Governança tem diversas camadas, é muito distribuída. A UNESCO trata de temas educacionais, a UIT desenvolve padrões de comunicação. Para países em desenvolvimento é complicado porque você precisa estar em diversas instituições e isso custa dinheiro”, diz Marília. “Veja o IETF (sigla em inglês para Força-Tarefa de Engenharia da Internet), onde engenheiros discutem protocolos técnicos. É possivel mexer no funcionamento da internet em vez de fazê-lo por regulação. É importante estar nesses espaços também.”
A NETMundial vai se arriscar em um modelo de reunião diferente, no qual as discussões principais são direcionadas por tema, mas o microfone estará “aberto”, à disposição de quem quiser entrar na conversa. “É uma discussão mais de baixo para cima”, diz Carlos Affonso. “O fato de ser microfone aberto fará com que a discussão vá por lugares não previstos.”