Em um mundo tendendo “mais ao menos do que ao mais”, vemos a diminuição drástica no uso do nosso extenso vocabulário.
Palavras são suprimidas do nosso uso comum simplesmente pela falta de uso, enquanto outras, que mal chegam, se tornam insuportáveis na sua repetição, mas fruto da efemeridade e da volatilidade dos tempos, somem de uma hora para outra e a gente nem sente falta.
Já escrevi antes do quanto acho horroroso ter acontecido um “acordo ortográfico” da Língua Portuguesa. Como se todos os países com esta linda língua precisassem se unir na escrita e na fala, quando o mais bonito é justamente respeitá-los nas suas diferenças, admirando o sotaque diferente e até se divertindo com os sentidos muito distantes.
Vestido de grande movimento de unificação, pra mim não passou de um grande atentado à nossa Língua e um superdesrespeito a dos outros.
Continuo achando imperdoável ter tirado o acento da ideia e a desconstrução de uma série de palavras com um pseudossentido de modernização e melhora, como se teoricamente facilitar ampliasse a leitura ou que com isso influenciássemos o seu melhor uso.
Mas e aí.
Mas e ai?
Mas e ai…
“São três pontos dispostos paralelamente à linha e ao lado de alguma palavra, elas servem para marcar uma pausa no enunciado, podendo indicar omissão de alguma coisa que não se quer revelar, emoção demasiada ou insinuação. São sinais gráficos que fazem referência ao sentido de continuísmo, podendo ser utilizadas no início, meio ou fim de uma frase. De uma forma geral, indicam um pensamento que ainda não terminou ou a omissão de alguma coisa que não foi escrita. Trata-se de um sinal de pontuação que demonstra uma interrupção da frase.”
Estamos falando das RETICÊNCIAS e se podemos dizer que a palavra em português tem sua origem no latim e significa algo implícito, mas que na realidade fica explícito quando entendemos que o Latim reticentia significa “silêncio”, do verbo reticere, “manter-se quieto, fazer silêncio”, que se forma por re-, intensificativo, mais tacere, “calar, não falar”.
Já quando vemos a sua versão inglesa (ellipsis), ela se mostra originada do grego, também passando pelo latim e tem o significado de “falta”, mas é justamente a palavra com raiz muito parecida com a palavra elíptico (elleiptikós em grego) que me traz a reflexão de hoje, pois ela significa “incompleto”: “A omissão da fala ou da escrita de uma palavra, palavras supérfluas ou que possam ser compreendidas a partir de pistas contextuais.”
É como se tudo pudesse se tornar intencionalmente incompleto, evidenciando uma grande falta e deixando tudo extremamente barulhento com o silêncio e o uso da opção em se calar. E isso só existe quando usamos reticências…
No meio dos seus demais amigos da turma dos sinais de pontuação e daqueles caracteres que a gente nem sabe às vezes quando digitar no nosso teclado: apóstrofo, barra, dois pontos, porcentagem, ponto, ponto de exclamação, ponto de interrogação, ponto e vírgula, vírgula, aspas, chave, cochete, parênteses, & (“e” comercial), trema e hífen, as reticências pra mim são a superação do medo de errar, a erradicação da obrigação de concluir, o direito à liberdade de opinião do próximo e a sublime opção em se manter incompleto para deleite da visão complementar de quem lê, dando a ele a possibilidade de cocriar, coexistir e ser coautor do que está sendo dito, escrito ou esboçado.
“As reticências também podem indicar uma ação que ainda não terminou, além de transmitir sentimentos como dúvidas, surpresas, hesitações, suspense etc. Dessa maneira, é uma forma de quem está escrevendo inserir vida em seus textos, principalmente em estilos mais livres, como no storytelling. O sinal dos três pontinhos é bem amplo. Outra utilização é quando quem está escrevendo quer transmitir uma mensagem de algo que se prolonga, deixando a interpretação sob responsabilidade do leitor. As reticências indicam ainda uma citação incompleta, principalmente de outros autores citados para enfatizar alguma ideia ou argumento. Essa utilização é bem comum nos textos científicos ou sobre personalidades que deixaram citações famosas.
Reticências é pra mim o mais intencional dos sinais gráficos, porque se ponto final é definitivo, quase falando: Pronto, é isso, acabei! A vírgula vai enumerando tudo com graça e o ponto e vírgula fica entre um e outro, a reticência é pura decisão e deliberada vontade de não fechar ou concluir a linha de pensamento.
É como se dissesse: Aqui não cabe um ponto final, nem vírgula e muito menos o ponto e vírgula… é algo aberto, então conclua, deduza, tire suas conclusões, imagine, pense, não ache que vou te dar a resposta pronta, vá pesquisar, vá saber de onde tirar, pense pelo amor de Deus, pense! Mas por favor, não aceite as vírgulas e pontos sem titubear, pois as reticências são a forma mais democrática de convidar a pensar, e, certamente, a não aceitar nenhuma resposta, nenhum texto ou opinião como definitivos, mesmo quando graciosamente dentro de aspas que citam ou mencionam uma opinião, que hoje correm o risco inclusive de não ser verdadeira.
E por mais que seja perigoso em uma época de leitura rasa, de entendimento tácito sem questionamentos e de vivermos um grande movimento de condução do quê e como pensamos por intermédio das mais diferentes formas de comunicação, a reticências pede licença para ser uma forma de deixar a leitura menos seca, menos conclusiva e por assim dizer, menos impositiva, como uma visão que se fecha nela mesmo e diz o que é (ponto).
O mundo dos pontos, das vírgulas e dos “entre aspas” – principalmente aquelas desenhadas com as mãos no ar – é um mundo da leitura literal, de aceitar o que querem que aceitemos, de não questionar e de simplesmente ser mais um na grande massa de manobra que nos leva a acreditar naquilo que é bom para “alguém”, sabe-se lá com qual intenção.
Afina,l nem tudo quer dizer o que está escrito e precisamos ler, ou melhor, entender além do conjunto de letras que formam palavras, de uma sequência delas que formam frases e de um amontoado destas que formam parágrafos onde se discorrem ideias, conceitos, opiniões e histórias que estão sendo contadas.
Precisamos ter a capacidade de interpretar as entrelinhas, as entreletras e os entreparágrafos e é justamente na leitura, e, principalmente, no entendimento do que não está visível, que está o segredo de um bom leitor e de um bom entendedor de tudo e de todos.
Reticências é honrar o direito à continuidade e às histórias que podem ser cocriadas, recontadas, adaptadas ou simplesmente interpretadas por quem lê. É a democracia da palavra escrita e interpretada, e sei que muitos a consideram desnecessária, a trocam facilmente por uma vírgula, e mesmo com o direito que lhes assiste, eu questiono: Para quê?
E se reticências é um convite ao cocriar, vale a pena também questionar o quanto isso não virou literal, moda, costume, processo, propósito ou a necessidade de ser inclusivo e permitir que todos tenham vez… E não sendo jamais genérico na análise e na necessidade, questione-se o quanto o seu time criativo precisa realmente da ajuda que for e pare de querer ficar procurando ponto final e enchendo de sinais de interrogação a qualquer ideia que recebe, vivendo entre vírgulas e se omitindo dos pontos finais necessários, sempre abrindo providenciais dois pontos para delegar aos outros quando seria muito importante você tomar a iniciativa de decidir, inclusive dar corda e reticências a quem tem como função inovar, criar e trazer novas ideias, fazê-lo.
Abra mão das aspas com citações de tudo o que você lê, acompanha ou assiste, se dê o direito às reticências do seu feeling, do que você sente, do que você acha e até mesmo do que você desconhece, pois ela existe exatamente para isso: Para não te trazer o peso de saber tudo, para não concluir, deixar aberto e você poder convidar as pessoas a continuarem o que começou, dando a elas o sentimento do pertencimento, de de fazer parte e aí sim, sendo realmente generoso num processo de cocriação de fato.
Eu gostaria muito que reticências fosse um verbo para que a gente pudesse conjugá-lo, colocando todas as pessoas verbais na sua frente e subentendendo que nós, as pessoas, os Seres humanos, os que agem, os que fazem e que conjugam qualquer verbo, podemos tudo, inclusive deixar em aberto um pensamento para que ele se complete pelo tempo, pelas circunstâncias, pela verdade e pelo lado orgânico de se responder naturalmente por meio da conexão que se faz necessária com o próprio mundo, os acontecimentos e as pessoas.
Então vale o questionamento sobre continuarmos buscando, lendo ou seguindo tantas mensagens taxativas, tantas lições empoladas, tantos lemas tantas vezes repetidos e tantas mensagens cifradas em lugar de deixar que as reticências nos levem às nossas próprias…
Vale também falar sobre a nossa ansiedade em seguir tantas frases feitas, lemas antigos e frases em lápides famosas, quando as reticências podem nos trazer novos conceitos…
E quem sabe tudo isso não seja um convite a deixarmos de lado inúmeras citações, verdades antigas ou de vivermos apenas na onda repetitiva do que já foi dito, escrito ou expressado…
E não poderia deixar de aproveitar os questionamentos para falar do conceito da tecnologia nos adiantar tantos hábitos, costumes e caminhos ao trazer com a ciência dos dados tantas informações que nos antecipam tudo aquilo que podemos fazer em benefício de um negócio, e, principalmente, do nosso público-alvo.
Dentro deste processo incrível e grande auxiliar às estratégias, cabe também a questão sobre isso ser um ponto final ou exclamação que resolve todos os nossos problemas ou se ainda cabem reticências?
Já que trago de novo a provocação, questionando se surpreendemos uma pessoa ao mostrar para ela que já sabemos o que ela quer ou propondo algo diferente que nem ela sabia que queria? Será que essa necessidade de prever tudo e ser definitivo, não pode estar evitando que possamos usar uma criatividade leve, instintiva e natural, quase orgânica e que sempre residiu na reticência das coisas, dos problemas, da busca de soluções e no insight legítimo que parece que vem do nada, da pura inspiração, da intuição ou de um feeling – mas que, ainda assim, é um caminho possível para quem foge do commodity e busca ser diferente de todo o resto?
Que tal então nos darmos o direito à liberdade de sermos reticências na nossa própria vida, procurando nos manter abertos à próxima frase, à próxima conclusão, à próxima ideia, solução ou, principalmente, ao próximo verbo.
Vamos ser livres…
Vamos ser menos literais…
Vamos nos abrir para o novo…
Vamos procurar menos respostas prontas…
Vamos apenas trazer e usar mais reticências…
Afinal, hoje a gente vê como a vida passa rápido, então, não desperdice seu tempo em questionamentos, dúvidas ou sendo cruel e crítico com você mesmo…
Faça valer cada instante. Isso sim é viver plenamente…
… e com todas as reticências.
Obs.: Para este texto foram usadas definições extraídas dos sites “Origem da palavra”, “Wikipedia” e“ dicio.com”.