No final da década de 70 estava no final de meu curso de Comunicação.
Achar um estágio era como procurar um filhote de panda no deserto do Saara.
Graças a um professor, consegui estagiar na editora que ele montou.
Pequena, é verdade.
Mas, estava lá aprendendo e ainda ganhando o dinheiro do ingresso do FLA X FLU.
Me esforcei muito.
Fui efetivado.
Agora ia ao FLA X FLU, tomava um mate com limão e comia o melhor cachorro-quente do planeta, o do GENEAL.
O curso de Comunicação era uma nova invenção.
E estava mais pra curso técnico do que outra coisa.
Bom, era um trabalho.
Uma oportunidade que não poderia perder.
E lá fomos nós aprender os mistérios das máquinas planas, dos linotipos, dos fotolitos e das off sets.
Um belo dia fui chamado pelo chefe.
A letra era: passar na Compositora Helvética, pegar um livro, já não lembro do nome, e levar em uma gráfica que ficava no meio da favela do Jacarezinho, subúrbio do Rio de Janeiro.
Parecia uma tarefa simples.
Principalmente porque ele me deu as chaves do carro de sua mulher, um Fiat 147 novinho em folha, daquela cor que não sabíamos definir direito se era verde ou azul.
Mais uma instrução: não fala nada pra ela que te emprestei o carro.
Meus queridos leitores que ainda estão comigo, o significado deste pequeno job e da instrução final relato a seguir.
A Compositora Helvética ficava no Estácio, bem no compasso, bem junto ao passo, de um conglomerado de casas de tolerância, também conhecido por Zona.
Mas tudo bem.
Era perto da hora do almoço e as meninas ainda estavam dormindo e seus fregueses estavam comendo.
Me certifiquei que tudo estava pronto e lá fui eu em busca do livro.
Naquela época, um livro era feito nas linotipos.
Isto quer dizer que cada linha era feita em chumbo, medindo 2,5 cm de altura.
Uma linotipo, a grosso modo, era uma enorme máquina de escrever, que tinha uma pequena fornalha acoplada, para derreter o chumbo, que era posto em um depósito e ao tempo em que o operador ia digitando as letras, formando palavras, aquilo ia se transformando em barras de chumbo, que correspondiam a cada linha.
Ao completar uma página, aquela coleção de linhas era amarrada, com barbante, e colocada em cima de um pedaço de papelão para que nada saísse do lugar.
Muito bem.
Fácil de imaginar?
Cada uma das páginas se tornava um paquet, era o nome desta maravilha, quase artesanal, e cada um tinha uma grande quantidade de linhas de chumbo.
Pesavam mais ou menos 3 quilos.
Se bem me lembro, o livro tinha cerca de 250 páginas.
Conclusão, tinha que colocar as 250 páginas em chumbo dentro do Fiat 147.
Se a conta não está errada, cerca de 700 quilos.
Tudo dentro de um carro zerinho, com cheiro de novo.
Feito.
O carro era pequeno, mas espaçoso.
O problema é que causei um enorme desequilíbrio no automóvel.
O Fiat ficou com aquele jeito de lancha, a proa pra cima e a popa lá em baixo.
Mas era hora de acalmar os sentidos e transportar o material.
Liguei o Fiat, e com muita pena do carro, comecei a me dirigir para a gráfica.
Quando estava bem no Largo do Estácio, na esquina da subida do morro de São Carlos, um passista da Escola de Samba me revela uma notícia sensacional; um dos pneus estava completamente arriado.
Bem que achei que estava difícil de dirigir.
Mas pensei, é por conta do peso.
Se eu havia escapado dos trotes de primeiro emprego ou da universidade, aquela era a hora de pagar a minha dívida.
Consegui parar o carro perto de uma calçada larga e comecei a operação troca de pneu.
Primeira conclusão óbvia: tinha que retirar todos os paquets de dentro do carro.
As 250 páginas foram colocadas na calçada.
Uma a uma.
Aqueles negócios eram superinstáveis.
Havia de ter enorme cuidado para o material não desmontar.
Final do primeiro ato.
Agora vinha a troca do pneu.
Instala o macaco.
Afrouxa os parafusos.
Levanta.
Tira o pneu.
Coloca o estepe.
Aperta os parafusos.
Abaixa o carro.
Aperta mais.
Guarda tudo.
Senta, liga e dá a partida.
Oh, oh!!!
Não está esquecendo nada???
Verdade.
Haviam as 250 páginas de livro na calçada do Largo do Estácio.
Hora de colocar tudo de volta.
Os 250 paquets.
Finalmente terminei.
Fui fazer uma última olhada na calçada pra ver se não havia esquecido nada.
Surpresa!!!
Uma linha tinha saído do lugar e ficou no chão.
Olhei.
Pensei.
Verifiquei dentro do carro.
Nenhuma pista.
De onde seria aquela linha.
Tinha que achar.
Isso significou tirar todas as 250 páginas do 147, colocar na calçada novamente, e ver se descobria de onde era.
Não descobri.
Estavam todas uma ao lado da outra.
Como cada linha media 10,5 cm, tinha em minha frente exatos 2.625cm de comprimento de linhas de chumbo.
Tive então uma brilhante ideia.
Coloquei tudo de volta no veículo.
Guardei a linha comigo.
E parti para a gráfica.
Tinha que chegar rápido, pois estava quase na hora da rua fechar para estes fins comerciais, e começar uma outra forma de comércio nas imediações da gráfica no morro do Jacarezinho.
Afinal, se alguém quiser me matar que fosse no Estácio.
Tudo entregue.
Debandei rápido.
No caminho de volta, parei numa borracharia para acertar o pneu. A válvula havia estourado. Claro.
Ainda bem que os outros aguentaram
Quando fui devolver as chaves ainda ouvi uma piadinha:
Ha Ha. Aproveitou o carro novo e foi dar uma voltinha, né.
Queria matar um.
Quando entrei no ônibus 416 (Usina/Forte) para voltar pra casa, senti um peso no bolso da calça.
E o que estava lá, a linha de chumbo.
Ia jogar fora.
Não fiz.
Guardei comigo de recordação.
Sabia que ela ainda seria útil.
E foi.
Por conta disso é que eu pude colocar as medidas exatas neste texto.
Carpe dien.
*Este texto incluindo seu título, tem citações incidentais da música de Luiz Melodia – ESTÁCIO HOLLY ESTÁCIO. Agradeço ao poeta.